22.5.10

Fotografias

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 O carro parou na porta da velha casa. Um turbilhão de pensamentos explodiram na minha cabeça, anos e anos vivendo ali, tantas memórias, eu nasci, cresci e só sai dessa casa quando me casei, agora com anos nas costas e dois filhos no banco de trás do carro estou aqui de frente para ela, infelizmente não num momento muito bom o cheiro da mãe ainda deve estar aí dentro.
 Infarto fulminante foi o que o médico disse quando cheguei no hospital correndo, nem deu tempo de levá-la para um hospital particular(a teimosa nunca aceitou o plano de saúde que eu queria dar à ela, dizia sempre que eu devia me preocupar com meus filhos porque ela já estava velha) a sensação de vê-la na maca fria persiste até hoje, dois meses depois, e minha inutilidade nesse momento também, não poder Ter feito nada, chegar tarde demais, não Ter podido passar o último feriadão com ela, sim , o remorso me corroe e deve me degenerar por um tempo ainda.
  Chegou a hora, encarar a verdade, tocar na ferida ainda em carne viva. Fico pensando porque trouxe os garotos junto comigo, talvez porque sozinho eu não conseguiria entrar ali e dessa vez, só dessa vez mesmo, a barulheira deles me ajudaria. Eles adoravam a avô e seu jeito tranquilo de ser, como ela dizia: avós são pais sem a necessidade de educar e sim de estragar os netos! Acho que ela estava certa, mãe seus netos estão chegando faz sua lasanha e seu bolo de chocolate para eles, conta aquelas histórias do pai para alegria dos moleques, mostra as fotos antigas e amareladas – organização nunca foi seu forte mesmo – para eles rirem despreocupados. Achei que demoraria mais para Ter essas lembranças dela, infelizmente foi bem mais rápido do que pensei.
 A casa era bem grande, a morte do meu pai na guerra serviu para algo além de dor e saudade, da porta tinha um corredor grande com portas de ambos os lados, a primeira era a da sala, no lado inverso a cozinha, depois banheiro, meu quarto, o dela, a porta dos fundos que dava para um quintal enorme com várias arvores e mesmo assim sempre estava limpo, agora não estava mas, estava cheio de folhas e frutos caídos, o desleixo que ela abominava, do lado da porta dos fundos tinha a escada que dava para o sótão, era lá que estava os fantasmas escondidos na forma de fotos, brinquedos e outras tranqueiras empoeiradas.
 Dois meses fechada, a casa já estava com um ar típico de lugar fechado, se bobear tinha até mofo, se é que mofo cresce assim desse jeito, comida não havia mais na geladeira se tivesse talvez ainda seria comestível. As crianças brincam sem preocupações e eu olhando para o alto criando coragem, parece até que estou escutando zumbidos fantasmagóricos, esse menino tem medo até da própria sombra ela dizia, mãe é mãe conheci os filhos como os dedos da mão, agora uma escada me separava desses fantasmas e eu vou subi-la.
 O lugar era grande cheio de caixas e lençóis cobrindo moveis velhos, depois de quase ser soterrado pela caixa consegui abri-la e dentro dela? Nada de importante, panos, roupas, agulhas de crochê. O medo dos tais fantasmas foi me deixando enquanto eu remexia nas caixas e tirava os lençóis empoeirados, a cada caixa aberta minha mente viajava, uma fralda de pano minha antiga, um carrinho que meu pai fez e me deu de presente, foto minha vestido de marinheiro, uma foto da mãe, coisa rara ela não gostava de tirar fotos, essa eu vou guardar comigo, coisas e coisas, memórias de alegrias, choros, decepções, felicidades, brigas, discussões. Mais uma caixa, fotos do pai com sua roupa
de militar, me segurando no colo, comigo na formatura do colégio, as medalhas – as pessoas morrem em campos de batalha e suas famílias ganham medalhas, como se medalhas pudessem substituir as pessoas mortas – o pai era um grande homem, cabeça-dura e conservador, porém, um grande homem.
  A gritaria dos moleques parou, devem Ter cansado melhor descer para ver o que aconteceu silêncio demais com duas crianças em uma casa pode ser fatal, descendo as escadas, eles não estão lá nos fundos onde estão então. Vagando pelos cômodos os encontro na sala, olhando assustados para o quarto, olho para lá também e meus olhos não acreditam no que vêem: minha mãe estava sentada na cama, olhando para nos três perplexos e assustados, com um olhar sereno e amoroso. Ela ou o que quer que aquilo seja se levanta e ensaia algo a dizer: Eu sei o quanto você é medroso meu filho, mas precisava te ver de novo saber se estava sendo bem cuidado por sua mulher, tanto você quanto meus netos. Fique tranquilo eu estou bem e sempre estarei com vocês, não se culpe pela minha morte não carregue isso consigo e lembre-se: eu amo vocês para sempre e na hora que tiver de ser nos veremos novamente até mais meus meninos.
 O despertador soou sua musiqueta irritante e ensopado de suor e com uma felicidade inexplicável vejo o sol nascer pela persiana.


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